A maneira como enxergamos a nós mesmos e os outros muda no decorrer do tempo. Nosso olhar sofre alterações constantemente. Um ponto de vista pode mudar levemente de ângulo, ou girar 180 graus. A lente, através da qual percebemos tudo a nossa volta, ganha diferentes tonalidades, dependendo do momento da nossa vida. Olhar, é uma atitude. E nada tem de estático ou passivo. É um processo em contínua transformação. E, à medida que vamos tomando consciência disso, torna-se um processo também em constante construção.
A vida dos atletas medalhistas Yohansson Nascimento, Raissa Rocha e Roberto Alcalde, assim como a relação que construíram com seus corpos, são exemplos tão reais quanto admiráveis desse processo que é o ato de olhar. Eles nos contam qual foi o papel do esporte em todos os aspectos e como foi protagonista em seus processos de autoconhecimento e transformou seus olhares como pessoas com deficiência.
Ponto forte: velocidade
Yohansson Nascimento foi seis vezes medalhista paralímpico e conquistou 11 pódios mundiais. Soma essa que justifica sua afirmação: “O que o esporte mais transformou, em mim, foi a responsabilidade de carregar medalhas de paralimpíadas no peito.”
O agora ex-atleta de 33 anos (Yohansson acaba de anunciar a aposentadoria das pistas para se candidatar à vice-presidência do Comitê Paralímpico Brasileiro) gostava de atividade física desde criança. Jogou futebol, andou de skate, e tinha o costume de participar das clássicas brincadeiras de criança nas ruas, como esconde-esconde e pega-pega.
Naquele tempo, já se animava ao apostar corrida na rua. Passados os anos, aquela animação se transformou em carreira e, por que não, destino. A velocidade se tornou a especialidade de Yohansson. Foi em 2005 que fez a escolha pelo esporte. E, desde então, só acumulou vitórias em competições paralímpicas.
O esportista da classe T46 (disputada por atletas lesionados ou amputados de membros superiores) reforça a importância de ampliar as referências de atletas dentro do esporte para que mais pessoas acreditem que podem chegar lá, e seu papel de servir como exemplo, como espelho, para novos participantes. “A partir do momento em que um atleta se torna medalhista em uma Paralimpíada, ele começa a ser referência no esporte para várias pessoas. Principalmente, por aqueles que estão iniciando no esporte. Então, nossa responsabilidade é muito grande, de ser um espelho, ser um exemplo para a nova geração”, explica o velocista.
Olhando para si
Yohansson Nascimento conta que sempre se sentiu tranquilo em relação a sua deficiência e seu corpo. O esporte trouxe alterações físicas, como ganho de massa muscular, mas as maiores transformações vivenciadas por ele, ocorreram no nível da compreensão e conscientização.
“Antes, eu não vivia em meio a tantas pessoas com deficiência. Mas, a partir do momento que você vê tantas pessoas e suas deficiências diferentes, você percebe que ter alguma diferença, é normal! Então, cada vez mais as pessoas vão se aceitando. Vão gostando do seu corpo. E eu acho que essa, sim, é a principal transformação que o esporte pode fazer em relação ao corpo da pessoa”, conclui.
Outra prova disso é a história de Raissa Rocha, lançadora de dardos, que hoje está com 24 anos e com importantes medalhas na modalidade que escolheu.
Aprendi a amar minha deficiência
“O esporte paralímpico é fundamental, para mim, pelo fato da minha aceitação comigo mesma. O esporte me proporcionou, de uma maneira difícil, a aceitação com meu corpo. Me amar do jeito que eu sou. Amar minhas qualidades, meus defeitos, amar a minha deficiência.”
O processo de aceitação de Raissa Rocha é diário. Evoluindo a cada dia que passa. E é o resultado de uma soma de fatores, como se abrir mais para o mundo, procurar enxergar as coisas por um ângulo diferente, experimentar coisas novas e que sempre quis fazer. Além, é claro, do esporte.
“O esporte foi fundamental para esse processo que eu passei e estou passando ainda. Porque esse processo de aceitação com seu corpo não ocorre de um dia para o outro. Também não é em apenas em um ano que você já fica ótima. Ocorre todos os dias. Todos os dias eu tenho que me conhecer. Eu tenho de saber do que eu gosto. Saber o que mudou de ontem para hoje. Todos os dias eu aprendo algo comigo mesma.”
A atleta passou anos para, de fato, aceitar seu corpo. A má formação congênita a impedia de enxergar suas qualidades e sua beleza.
Participar dos Jogos Paralímpicos de 2016 a transformou completamente. “Pude ver que todos os atletas medalhistas têm a sua deficiência e se aceitam do jeito que são. E eu não me aceitava antes. Eu fiquei um bom tempo não me aceitando. Mas, de 2016 para cá, eu fui vendo o outro lado da vida”, apontou.
Quando questionada sobre o que mais mudou em sua vida depois que participou dos Jogos Paralímpicos em 2016, Raissa responde: "Ela toda, na verdade. Mudou tudo! Teve uma reviravolta bem grande. Foi quando eu me tornei a atleta que eu sou, a pessoa que eu sou.”
Raissa enxerga o esporte como o principal fator responsável pelo sucesso de sua jornada em busca de autoaceitação. Enfatiza que houve um conjunto de fatores, mas que a prática esportiva foi o pivô desse processo como um todo. Foi o esporte que pôde desencadear a transformação em tantas áreas de sua vida, foi ele que a fez evoluir como mulher.
“O esporte é fundamental para mim, nesse ponto, porque me transformou completamente. E eu me aceitando como eu sou, me fez evoluir como atleta. E como mulher. O que é mais fundamental ainda”, completa.
O olhar dos outros
Aceitar o seu corpo como ele é. Compreender que, diferenças, nem sempre são desvantagens. Entender que uma parte de você, não diz tudo sobre você. São aprendizados que nossos entrevistados vivenciaram na pele. Contudo, o nadador Roberto Alcalde nos alerta para uma segunda questão: a importância do olhar do outro.
“Quando as pessoas começaram a ter mais contato com o esporte paralímpico, [percebemos essa mudança]. Então, muita gente que não conhecia passou a conhecer, houve um grande avanço para quebrar um pouco do preconceito que a sociedade tem em relação às pessoas com deficiência.”
Roberto foi campeão mundial em natação paralímpica no ano de 2013. Conquista essa que faz com que, um evento do porte dos Jogos Paralímpicos Rio 2016, pareça apenas mais uma competição. “Passou a competição, foco na próxima!”, afirma o nadador. Ele nasceu com mielomeningocele e nos conta que, em relação a sua deficiência, sempre foi muito tranquilo. “Eu sempre fui meio tortinho”, brinca o esportista.
“Antes, tinha bastante musculatura nas pernas. Mas, depois de uma fratura, eu perdi totalmente essa musculatura. Minhas pernas ficaram fininhas. Dois palitinhos de dente”, compara ele, sempre em tom bem-humorado.
Não somos ETs
Mas, se por um lado, a deficiência não configurava um problema para ele, por outro, lhe incomodava a forma dos outros olharem para ela. As pessoas são capazes de excluírem o que não entendem ou não gostam. Isso fazia com que o próprio Roberto acabasse se excluindo, para evitar esse tipo de situação.
Ele consegue ter uma relação bem leve com seu corpo e com sua deficiência. Mas permanece atento e crítico às necessidades de transformação, ainda tão necessárias, no olhar da população como um todo. E enfatiza que, para isso acontecer, é preciso que as pessoas convivam mais com as diferenças.
“Por isso falo dos Jogos de 2016, que foram muito importantes, principalmente, para trazer mais conhecimento para as pessoas. Elas puderam compreender que, não é porque a pessoa tem uma diferença física, que ela é um ET. A deficiência é apenas um detalhe. Um detalhe externo. É a casca. Mas é uma pessoa que está ali”, afirma.
Para Roberto, o esporte paralímpico mudou a vida de muita gente. Mostrando que as pessoas podem muito mais do acreditavam, inicialmente. “Elas podem ser muito mais do que pensavam que podiam ser. Conseguem alcançar o que sonharam ser, por meio do esporte, por meio da dedicação”, explica.
A imagem que temos de nós mesmos é resultado do ângulo através do qual nos olhamos, combinado com a forma que o mundo nos enxerga. O aprendizado ocorre de ambos os lados. De dentro para fora e de fora para dentro.
Aprender a se aceitar, ter consciência do outro e conviver mais com as diferenças. Tudo isso, sem deixar de lado uma pitada de humor, parece ser um bom começo para uma melhor relação conosco e com os outros. E o esporte, pode ser o pivô, pode ser o pontapé inicial para nos lançarmos nesta jornada, como nossos três atletas compartilharam.
Nem ET, nem super-herói, apenas atletas. Esse é um dos principais aprendizados que Yohansson, Raissa e Roberto trazem em suas falas, do esporte como um lugar de desafios constantes, seja em sua jornada de autoestima, seja em novos recordes.